Há um lugar comum de péssima cepa e de infundada base que falsamente nos revela Hans Kelsen como pensador interessado exclusivamente na construção de uma teoria dita pura do direito. Seus detratores o apresentam como protagonista de um putativo monólogo do positivismo jurídico, no contexto do qual só se fala da norma, de sua vigência, de sua eficácia e de sua relação escalonada. Tenho me esforçado para enfatizar o engano desse postulado.
Nessa semana exemplifico com fascinante estudo de Kelsen sobre o tema do Direito nas Sagradas Escrituras. Do ponto de vista analítico, trata-se de estudo profundo sobre semelhanças e dissemelhanças entre o Direito do Antigo Testamento e o Direito do Novo Testamento.
Em forma de ensaio, o leitor pode encontrar essas reflexões no livro O que é Justiça, publicado pela Martins Fontes, em precisa e idiomática tradução de Luís Carlos Borges e Vera Barkow. Kelsen resgatou a complexa relação que há entre Direito e religião (e por consequência entre Estado e religião), com base em precisa análise de crítica literária, com fortíssimo viés teológico. Parece-me um de seus textos que mais revelam sua imensa cultura.
Aproximação e separação
As relações entre Estado e religião são problemáticas porque há vários pontos de convergência e de semelhança, bem como há vários aspectos de divergência e de dissemelhança. Há instâncias em que Estado e religião identificam-se plenamente, e vários exemplos históricos comprovam essa premissa. Há registros de organizações estatais teocráticas, a exemplo dos antigos egípcios e dos hebreus; nesse último caso, há fartos relatos literários, que compõem a tradição do Antigo Testamento.
Há também conflito recorrente, confirmado pela intersecção entre práticas religiosas e a história universal da violência. O exemplo mais emblemático consistiria nas Cruzadas, ocorridas entre 1095 e 1492, marcadas por uma obsessão europeia de conquista do Mediterrâneo e do Oriente Próximo, sob o argumento de que Jerusalém deveria ser libertada dos infiéis invasores.
Essa oposição entre cristandade e mundo muçulmano parece ser interminável, qualificando um choque de civilizações, na infeliz expressão de um cientista político conservador norte-americano. Associa-se o terrorismo internacional a um pano de fundo religioso, o que sugere permanência do espírito cruzadístico na cristandade ocidental. Tem-se, mais uma vez, a religião enquanto um problema, ou como uma causa, justificando-se a agressão mútua. Leiam, por favor, V-13, de Emmanuel Carrère, que trata do julgamento dos atentados de Paris.
Estado e religião também se aproximam na medida em que compartilham origem de algum modo comum. Estado e religião inicialmente não se separavam de modo muito claro. Essa premissa pode ser constatada no Direito Público romano, ambiente histórico e normativo no qual a figura do sacerdote confundia-se com a do magistrado, isto é, no mundo romano eram pouco nítidas as separações entre funções sacerdotais e jurisdicionais.
Além do que, o Império Romano, sempre dependente do apelo ao transcendente, adotou uma então nova religião, o cristianismo, provocando uma definitiva aproximação entre duas instâncias da experiência humana que o tema da laicidade enfrenta com dificuldade. Essa tendência consolidou-se com a adoção do cristianismo como religião oficial do Estado Romano, um processo que remontava ao Edito de Milão (313 d.C.), que afirmava a neutralidade religiosa, e que deu fim às perseguições religiosas, especialmente em relação aos cristãos.
Com a separação entre essas instâncias, Direito e religião, a teoria do Estado vai se revelar como uma teologia secularizada, na qual o Deus onipotente seria substituído por um legislador todo-poderoso; isto é, no limite, a jurisprudência socorreria ao Direito como o milagre se aproximaria da Teologia. Refiro-me ao contexto da tradição europeia e ocidental, especialmente no mundo dito moderno, no qual as burocracias jurídicas e eclesiásticas se aproximam.
Mistérios e contradições
Kelsen inicia seu texto ponderando que para o cristianismo a justiça seria uma qualidade essencial de Deus. Sendo Deus absoluto, eterno e imutável, por consequência, assim deveria ser a justiça. Associar a justiça a uma divindade seria tentativa de racionalizar o que por natureza é irracional. Para Kelsen, como a onipotência de Deus seria compatível com a justiça? Além disso, os fatos da fé estão além de qualquer cognição racional; a justiça, nessa linha, seria mais mistério, dos muitos mistérios da fé…
Kelsen constatou que há muitas contradições entre Antigo e Novo Testamentos, em relação a temas jurídicos centrais, a exemplo da poligamia, da escravidão, da vingança de sangue, entre outros. Pondera, com toda a razão, que se tratava de mundos distintos, absolutamente distintos. Enquanto em Deuteronômio 24, I, o divórcio era autorizado, em Marcos 10,2, não se pode separar o que Deus uniu.
Segundo Kelsen, a tradição de Moisés cuidava de um matrimônio poligâmico e anulável, enquanto a tradição do Evangelho cogitava de um matrimônio monogâmico e inviolável. De acordo com Kelsen, são duas etapas históricas que revelam ordens jurídicas distintas.
Há contradições também de ordem geral. Kelsen exemplifica com o antagonismo que marca o princípio da retribuição, que é absoluto no Antigo Testamento (Deuteronômio, 19,19), e que no Novo Testamento é temperado pelo amor e pela compreensão do outro, o que também encontramos no Antigo Testamento (Levítico, 19).
Kelsen adiantou uma tese que será mais tarde encampada por Harold Berman (Direito e Revolução, o impacto do protestantismo na tradição jurídica ocidental, não sei se há tradução para o português). De acordo com esse paradigma, a relação entre Deus e os homens é mediada por um contrato (uma aliança), que se reproduz, no plano secular, no contrato social que lastreia uma Constituição.
Justiça e fé
Kelsen impressionou-se com passagens desconcertantes do Antigo Testamento, mencionando, por exemplo, Êxodo, 21,28, em que se lê que “Se um boi chifrar um homem ou uma mulher, causando-lhe a morte, o boi terá que ser apedrejado até a morte, e a sua carne não poderá ser comida. Mas o dono do boi será absolvido”. Como interpretar essa enigmática passagem?
A interpretação dessa passagem, como muitas outras, demanda coragem de análise que os críticos simplistas de Kelsen não ousariam encarar. Ao desbravar dilemas e ambiguidades do Direito nas Escrituras, Kelsen não apenas escapa ao reducionismo dogmático que seus detratores lhe imputam, mas revela um pensamento de magnitude assombrosa, que transcende os limites do positivismo jurídico, tomado em sua acepção vulgar e reducionista.
Kelsen nos instiga a refletir se o Direito, na sua essência, não carregaria também a essência do mistério e do paradoxo, espaço em que justiça e fé se encontram e procuram não se estranhar.
Para Kelsen, o Direito não pode ser compreendido em sua plenitude se ignorarmos essa dimensão quase espiritual, esse traço enigmático que religa o homem à ideia de uma ordem cósmica. A grandeza de Kelsen (mais uma delas) reside justamente aí: ele é o teórico que enfrenta a sombra e a luz, que nos desafia a olhar para além da norma e a reconhecer no Direito, talvez, um último vestígio do sagrado que não se separa do mundo secular.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado e parecerista em Brasília.
Republicação de https://www.conjur.com.br/2024-out-27/kelsen-e-o-direito-nas-sagradas-escrituras/