Em 2024 me esforcei para consolidar a coluna Embargos Culturais como espaço privilegiado para reflexão e diálogo sobre a interseção entre cultura, filosofia, literatura e direito. Ao longo de cerca de 60 artigos, explorei variedade de temas, livros e problemas, sempre com o objetivo de incentivar à leitura de textos que me parecem provocadores.
Uma leitora certa vez me questionou, no sentido de que eu só falava bem dos livros que resenhava. A resposta é muito simples: eu somente resenho livros que me fascinam. Os livros de que não gosto, ou que não me interessam, ou que talvez não teriam interesse para o leitor, eu simplesmente deixo de lado. E são muitos. Reconheço, no entanto, que toda escolha é arbitrária.
Em 2024 a literatura ocupou um lugar de destaque na coluna. Livros como ‘Bambino a Roma’, de Chico Buarque, e “O Último dos Copistas”, de Marcílio França Castro, me parecem um bom ponto de partida para reflexões sobre memória, identidade e a intersecção com as transformações tecnológicas. São livros que celebraram a produção literária contemporânea, e que também suscitam debate sobre a relevância da arte em tempos de superficialidade digital. Nem tudo está perdido.
A releitura de clássicos também teve seu espaço. Com um fragmento “Cadernos de Lanzarote II”, de José Saramago, refleti sobre a imprevisibilidade da vida e a forma como o destino é moldado por escolhas e circunstâncias. Em 2025 pretendo resenhar toda a obra de Saramago, sempre em uma perspectiva potencialmente jurídica, com mote numa concepção de “justiça poética”, que é um dos temas desse celebrado autor, ao rever sua própria trajetória. Saramago é um “self-made man das letras”, a exemplo de nosso Machado de Assis.
No campo jurídico, a discussão sobre direitos humanos foi central. A revisitação de obras como “A Era dos Direitos”, de Norberto Bobbio, propiciou análise crítica sobre os avanços e desafios desse campo. A reflexão sobre os conflitos entre universalismo e relativismo cultural ainda é essencial em um mundo cada vez mais polarizado. Em 2025 tratarei de dois livros fundamentais de Salmon Rushie, e começarei com “A Faca”, que é uma profunda reflexão sobre o atentado que o escritor sofreu.
De fato, a preocupação com eventos recentes, como o julgamento dos atentados de Paris descrito em “V13: O julgamento dos atentados de Paris”, de Emmanuel Carrère, mostra-nos como o sistema jurídico lida com traumas coletivos e a busca por justiça. Carrère é um escritor aliciante; de sua autoria, preparei para 2025 a resenha de “Um romance russo”, uma “obra de tristeza infinita, ciúme infernal e paixão violenta”, segundo os críticos do Le Monde.
Ao longo do ano de 2024 a coluna explorou as relações entre filosofia e poder, com base no Platão da “Carta VII” exemplo de como ideias filosóficas podem ser confrontadas pelas realidades políticas. As relações entre os intelectuais e o poder sempre tiveram papel privilegiado na coluna. O tema será aprofundado em 2025, com resenhas da obra de Thomas Sowell, um autor norte-americano lúcido e impressionante, combatido pela esquerda.
A coluna enfatiza o papel dos intelectuais no mundo contemporâneo. Em 2024 tratei do discurso de Clèmerson Merlin Clève quando tomou posse na Academia Paranaense de Letras. Clèmerson é um de nossos maiores juristas, intransigente defensor da aproximação entre literatura, direito e preservação cultural.
A exploração de temas jurídicos pouco explorados, a exemplo de obras como “Direito nas Sagradas Escrituras”, de Hans Kelsen, alavancou perspectiva para conectar direito e religião. O debate em torno da influência de normas religiosas no direito secular revela contradições e complementaridades entre esses arranjos, de razão e fé, de imanência e transcendência. Por essa razão, os últimos três artigos do ano abordaram as complexas relações entre direito e religião, no contexto de suas semelhanças e dissemelhanças.
A diversidade de temas abordados ao longo de 2024 comprova compromisso da coluna em aproximar direito e cultura. A coluna já passa dos dez anos ininterruptos e reafirma compromisso em favor da retomada dos estudos humanísticos por parte de quem lidamos com o direito, com a justiça e com as injustiças. Essas últimas são infelizmente muito maiores. A algoritimização dos tribunais tem humilhado a advocacia. A coluna é ambiciosa, no sentido de que pretendo conectar leitores e seguidores com transformações e arranjos institucionais de nossos tempos, tão difíceis.
Tenho procurado enfatizar o papel da cultura como resistência e renovação em tempos de instabilidade. Há autores que enriquecem a reflexão jurídica, ainda que não sejam autores jurídicos. Exemplifico com a coluna que tratou de Ignácio de Loyola Brandão (Não verás país nenhum). Procurei também realçar autores jurídicos contemporâneos, como Lana Borges, e seu imbatível texto sobre tributação e gênero. De igual modo, retomei autores já consagrados, como Manuel Atienza, na filosofia do direito, e Fábio Osório Medina, no direito administrativo.
Agradeço a todos que me acompanham nessa jornada. Rejane Guimarães Amarante tem sido uma observadora permanente e estimulante, comentando artigos no espaço próprio da coluna. Agradeço as interlocuções com a economista Alessandra Cardoso e com a pianista e agitadora cultural Cristina Couto Andreatti. Agradeço o incentivo do diplomata Paulo Roberto de Almeida, do colega de tantas lutas na AGU, José Diogo Cyrillo da Silva, do meu guru para temas de direito público aplicado, Rui Magalhães Piscitelli, e do combativo advogado José Rollemberg Leite Neto. Agradeço à paciência e ao apoio da turma da Conjur, na pessoa do Márcio Chaer, uma mistura de mecenas, ombudsman da vida judiciária brasileira e atento defensor da ordem democrática.
Por fim, um registro. A coluna me dá muitas alegrias. A maior delas: certo domingo nesse ano de 2024, pela tarde, numa livraria em Brasília, encontrei um advogado militante conhecido e prestigiadíssimo que comprava um livro cuja resenha fora publicada na coluna daquele dia. Me disse que o interesse surgiu com a leitura matinal da coluna, que fazia sistematicamente. Não há, e nem pode haver, melhor recompensa intelectual e afetiva.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado e parecerista em Brasília.
Republicação de https://www.conjur.com.br/2024-dez-29/embargos-culturais-retrospectiva-2024/