Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva

Muita gente assistindo ao filme Ainda estou aqui. Muita gente. Muita gente mesmo. Aqui em Brasília, tenho amigos que tentaram ver o filme algumas vezes e que não conseguiram ingressos. O fio condutor da fita (como se dizia antigamente) é a prisão, tortura e desaparecimento do engenheiro Rubens Paiva, deputado cassado em 1964. O tema é o horror da ditadura militar. Um tema que não podemos esquecer. A ditadura já foi envergonhada, escancarada, derrotada, encurralada e acabada — são os cinco livros de Élio Gaspari —, mas que não pode ser esquecida. O filme é pedagógico.

O filme é dirigido por Walter Salles, com insuperáveis atuações de Fernanda Torres e de Selton Mello. Fernanda Montenegro aparece no fim, protagonizando a brava filha, Eunice (esposa de Rubens Paiva), quando o Alzheimer já lhe alcançava a quarta fase, na classificação de Dráusio Varella. O olhar de Fernanda/Eunice foi tratado em sublime crônica do roteirista Renato Terra, publicada na Folha de S.Paulo: o autor realçou um olhar que anuncia a iminência de uma tragédia, que é recorrente em tempos de violência política. 

Percebi algo que nunca vi em mais de 50 anos de obsessão por cinema. O filme se encerra. Segue aplauso tímido, e logo mais, frenético. Ninguém se movimenta. Ninguém se mexe na cadeira. Ninguém quer ir embora. Há muita gente com lágrimas nos olhos. Eu desatei a chorar na cena da foto familiar de fim de ano, quando Eunice já não reconhecia ninguém. Me tocou um anelo de harmonia familiar, que me parece ser o que sempre perseguimos, e quase nunca alcançamos. Uma sufocante sensação de desamparo.

O filme tem cenas tocantes. Os irmãos discutem quando enterraram o pai, cujo corpo nunca apareceu.  O atropelamento do cachorro e a reação de Eunice com os “agentes de segurança” que não saíam de frente de sua casa. O guarda que na cadeia diz que queria que ela soubesse que ele não concordava com tudo aquilo que estava vendo. Marca o espectador também quando Eunice vê o carro da família (um Opel vermelho) no estacionamento do presídio. A insinuação de Rubens Paiva de que o embaixador suíço sequestrado não estava sendo violentado; fumava charutos…

A recriação do Rio de Janeiro em 1971 é muito bem-feita. Estive uma vez na Belmiro Gouveia, 80, no Leblon, onde viviam. Depois que se mudaram houve ali um restaurante suíço muito badalado. Depois, hoje, um prédio. Tenho a impressão de que a areia da praia vem diminuindo, e confirmei isso lendo Marcelo.

Há muitos fuscas, corcéis, karmann-ghias, belinas, dodge-darts, e todos aqueles carros do tempo em que no Brasil conseguíamos saber quais eram todos os carros. Tenho a impressão de que vi uma Honda 125 ano 1970, que é anterior à Honda CG 125, a motoquinha mais querida de nossa história de duas rodas. Os figurinistas vão bem, roupas, penteados e cores batem com o tempo retratado; já os cenógrafos e decoradores de set cometem um pequeno deslize: o leitor já percebeu como os carros estão sempre limpinhos e reluzentes em filmes de época? Parece que saíram da concessionária revendedora, naquele exato momento. Eu sou daquele tempo e havia sempre carro sujo e enlameado na rua, como hoje.

O filme é baseado em livro de Marcelo Rubens Paiva, com título homônimo, que tenho aqui comigo na edição da Alfaguara. Minha geração leu Marcelo, com entusiasmo, desde Feliz ano velho, publicado em 1982. Nesse livro tem-se uma tragédia pessoal, e uma superação. Num salto em um lago raso, Marcelo ficou tetraplégico. Firmou-se como um dos melhores escritores brasileiros contemporâneos. Li tudo que escreveu. Meus preferidos são As verdades que ela diz; Não és tu, Brasil; E aí, comeu?; Bala na agulha; A segunda vez que te conheci; Do começo ao fim; Malu de bicicleta, entre tantos outros. Levou o Jabuti por Feliz ano velho, que li em algum lugar ter sido o livro brasileiro mais vendido na década de 1980. Vale a pena uma releitura.

O filme é uma adaptação livre (e em certa medida bem fiel) da versão em forma de livro. A leitura desse último, no entanto, é fundamental para que liguemos os pontos e arestas do filme. A impressão que tenho (e posso estar errado, na maioria das vezes erro) é que a narrativa do livro é mais centrada na mãe (Eunice) do que no pai (Rubens). O autor parece que transcendeu o desaparecimento do pai e que, naquele momento (o livro é de 2015), estava mais preocupado com a doença que derrubou a mãe. 

Memórias

Na essência, é um livro de memórias, e Marcelo é um dos grandes memorialistas brasileiros, ao lado de Gilberto Amado, Zélia Gattai, Pedro Nava, Érico Veríssimo. Tem muita história para contar. O livro começa com algumas digressões sobre o tema da memória, e como construímos (e destruímos) nossas reminiscências. Há muita passagem reproduzida no filme, a exemplo do “não concordo” do guarda. Há muita informação sobre aquele tempo, de triste memória. Segundo Marcelo, boa parte dos guardas do presídio eram chamados de “catarinas”, justamente porque vinham de estados meridionais. 

O livro complementa, explica, amplia e fecha o filme. Quem assistiu ao filme lembra-se da cena da despedida de Marcelo, ainda menino, quando saem do Rio de Janeiro e vão para São Paulo (na realidade foram para Santos, cidade dos avós de Marcelo). Os meninos se despedem chamando-o de “vigarista”. Marcelo conta a origem do apelido. Um dia, sua mãe o chama, dizendo algo como “seu vigarista, você não vai voltar para casa não?”.

A luta de Eunice me parece o ponto central do livro, e não necessariamente a prisão do pai. Marcelo enfatiza o protagonismo da mãe. Formada em letras, ela volta para a faculdade, formando-se em direito. Advogou intensamente, e com muito sucesso, em São Paulo, sendo muito conhecida pela turma que frequentava o João Mendes. Segundo Marcelo, “aos poucos, ela (a mãe) se deu ao luxo de atuar numa área que não dava dinheiro, mas pela qual se apaixonou inexplicavelmente: o direito indígena. Passou a atender e a representar nações indígenas que tinham suas terras demarcadas não respeitadas”. Eunice foi uma advogada militante de causas indígenas, dando consultas para o Banco Mundial e outros órgãos internacionais.

De acordo com o autor, a mãe era dura, objetiva, direta, uma italiana (era da família Faccciolla) que não dava espaço algum para pieguice alguma. Eunice, prossegue Marcelo, “nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpou esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras”. 

Penso que a Eunice do filme é menor do que a Eunice do livro. As duas, certamente, condensam a Eunice da vida real. No filme tem-se a impressão de que Eunice é esposa e mãe, e que a tragédia marcou epifania que exigia reinvenção de si própria. No livro, tem-se uma Eunice muito mais alargada. Leitora voraz, cultíssima, muito bem relacionada com escritores (a exemplo de Antonio Callado), decidida, intimorata, aguerrida, audaciosa, audaz. Namorou. Mas não se casou de novo. Casar para quê?

Das páginas de um livro muito bem escrito para as telas de um filme sublime, Eunice é a mulher que não concede às intermitências da vida (para ser antípoda a Saramago). No filme, é uma sobrevivente. No livro, é uma desafiadora. No filme, é formada pelas circunstâncias. No livro, dita as circunstâncias. Eunice é a protagonista da história, que escreve, dirige e formata de acordo com sua vontade, respeitando, apenas, as limitações da força, que não consegue dominar, porque, como todos nós, está presa em seu próprio tempo.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado e parecerista em Brasília.

Republicação de https://www.conjur.com.br/2024-dez-01/ainda-estou-aqui-de-marcelo-rubens-paiva/

Pular para o conteúdo